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A tutela provisória no novo CPC – parte I: Prelúdio para o caos

 Olá, amigos leitores!

Chegou a hora de pagar uma promessa que fiz há algumas semanas, qual seja, de falar sobre qualquer tema do novo CPC que fosse de escolha de vocês. Na época, o assunto que saiu vencedor em nossa votação foi a tutela provisória. Tema difícil e envolvo em controvérsias, o que mostra que vocês não têm a menor pena de mim.

Em retribuição, também não terei nenhuma pena de vocês. Chegou a hora de mostrar-lhes o caos no novo CPC e, quem sabe, entendê-lo um pouco melhor.

Segue o itinerário de nossa viagem, em duas etapas básicas: primeiro, vamos estabelecer o que significam alguns conceitos básicos no assunto e as espécies de tutela provisória admitidas no novo CPC; em seguida, vamos buscar delimitar as principais controvérsias doutrinárias e indicar possíveis soluções.

Agora, não há mais volta: que comecem os jogos!

  1. Pegando leve: os conceitos básicos da tutela provisória

 a) O que é tutela provisória? Essa é a primeira pergunta a se fazer quando se trata do tema. Tutela provisória nada mais é do que um gênero de provimentos do juiz fundados em cognição sumária, ou seja, em um juízo de probabilidade (verossimilhança). Opõe-se à tutela definitiva, que se ampara em cognição exauriente.

É comum se associar a tutela provisória à liminar. Contudo, liminar diz respeito apenas ao momento em que é proferida determinada decisão judicial (em fases iniciais do procedimento), nada tendo a ver com seu conteúdo. Há tutelas provisórias não liminares (por exemplo, aquelas concedidas na sentença, de maneira a afastar o efeito suspensivo automático da apelação) e há liminares que não são tutelas provisórias (por exemplo, a sentença de improcedência liminar do pedido – art. 332 do CPC/2015).[1]

 

  1. b) Quais são as espécies de tutela provisória? Esse é a típica pergunta que é melhor respondida com uma representação gráfica. Para fins didáticos, peço licença ao meu amigo Fernando Gajardoni e pego emprestado o esquema que está em nosso livro de comentários à parte geral do CPC/2015, com algumas adaptações:[2]

                                                                              Clique na imagem para ampliar

novocpcgraf

Calma, vamos explicar o que são todos esses conceitos!

De acordo com uma primeira classificação, a tutela provisória pode ser de urgência ou de evidência. Na primeira espécie, é necessário, para que a medida seja concedida, que se demonstre uma situação de risco iminente, ou seja, uma urgência. Por exemplo, se uma pessoa necessita de internação médica o quanto antes, sob pena de correr risco de vida, esse é um caso claro de tutela de urgência. Se você precisa congelar bens do executado porque ele está se desfazendo de todo o seu patrimônio, esta é uma outra situação de tutela de urgência, porque não se pode simplesmente esperar o momento em que seja prestada a tutela definitiva.

Em contraposição, a tutela de evidência – novidade do CPC/2015, pelo menos quanto à sua sistematização[3] – não exige tal demonstração de urgência. Há situações em que a lei considerou que a probabilidade de o demandante ter razão é tão alta que não faria sentido obrigá-lo a suportar o ônus do tempo do processo.

No art. 311 do CPC/2015, temos quatro situações de tutela da evidência: (i) quando o réu abusa do direito de defesa ou atua com propósito protelatório; (ii) quando as alegações de fato do autor não só estão comprovadas por documentos, mas se amparam em tese jurídica estabelecida em casos repetitivos (recurso especial ou extraordinário repetitivo ou incidente de resolução de demandas repetitivas – art. 928); (iii) quando se trata de pedido reipersecutório (entrega de coisa) fundado em prova documental do contrato de depósito[4]; e (iv) quando a petição inicial está instruída com prova documental suficiente e o réu não apresenta prova capaz de gerar dúvida razoável.[5]

Além disso, há outras hipóteses específicas de tutela de evidência no CPC/2015, todas fundadas em cognição sumária sem demonstração de urgência, como na liminar da ação possessória de força nova, ajuizada menos de um ano e dia da turbação ou do esbulho (art. 558) ou no exercício antecipado dos direitos de usar e de fruir de determinado bem pelo herdeiro no inventário (art. 647, parágrafo único) ou, ainda, na determinação de expedição de mandado de pagamento na fase inicial da ação monitória (art. 701).[6]

A tutela de urgência se subdivide, ainda, em tutela antecipada e tutela cautelar. Trata-se de categorias clássicas e há muito conhecidas.

Qual a diferença de uma para a outra? Costumo explicar essa distinção recorrendo a um exemplo imaginário de duas partes brigando por um pedaço de bife. Para que se chegue a uma decisão definitiva, levará tempo, o que cria riscos de variadas espécies. Se o risco em jogo é que o bife apodreça, o juiz deve determinar que seja colocado no congelador. Esse é um exemplo de tutela cautelar, apenas conservativo. Nenhuma das partes poderá usufruir do bife, que apenas é congelado para ser preservado.

Agora, se o risco é que uma das partes morra de fome enquanto brigam pelo bife, o juiz pode determinar que essa parte coma um pedaço para sobreviver. Esse seria um caso de tutela antecipada, nitidamente satisfativa. Na tutela cautelar, o risco era o processo se tornar inútil, pelo apodrecimento do bem; aqui, o risco é para uma das partes.

Claro que nem sempre é tão fácil, no caso concreto, saber se é uma situação de tutela cautelar ou de tutela antecipada. No CPC/1973, concebeu-se na doutrina o princípio da fungibilidade, justamente para evitar esse tipo de discussão. No CPC/2015, embora esse princípio continue válido, como é evidência o art. 305, parágrafo único,[7] pode haver dificuldades práticas para sua aplicação, pois as duas categorias possuem procedimentos distintos quando formuladas em caráter antecedente.

  1. c) Essa é a única classificação das tutelas provisórias? Não! A classificação anterior se estabelece em relação aos requisitos e conteúdo da tutela provisória.

Especificamente a tutela de urgência, contudo, admite outra classificação, quanto ao momento em que é formulada, podendo ser de caráter: (i)incidente, quando postulada no curso de ação já ajuizada ou simultaneamente à petição inicial com pedido de tutela definitiva; ou (ii) antecedente, antes que seja formulado o pedido de tutela definitiva.

A lei, de forma excepcional, autoriza que o pedido de tutela provisória seja formulado em caráter antecedente, justamente por conta da urgência envolvida. Imagine-se, por exemplo, um caso de internação médica, em que a intervenção deva ser feita em questão de horas, sob pena de risco de vida. No CPC/1973, muitas vezes, o advogado fazia uma petição inicial às pressas, nem sempre tecnicamente perfeita, porque o tempo não lhe permitia. No CPC/2015, o advogado poderá se limitar a pedir a tutela de urgência, sem prejuízo de, em momento posterior, aditar a petição inicial complementando a sua argumentação e formulando o pedido de tutela definitiva (art. 300, § 1º, I).

A tutela da evidência – que não pressupõe urgência – não admite formulação em caráter antecedente, mas apenas de forma incidental.

  1. Chutando o balde: as tutelas em caráter antecedente

Até aqui navegamos em águas relativamente tranquilas. O panorama começa a mudar quando começamos a analisar os procedimentos das tutelas em caráter antecedente.

Nas tutelas formuladas em caráter incidental, não há maiores inovações. Mesmo quando se trata de tutelas de urgência – que, lembre-se, podem ser de natureza antecipada ou cautelar –, não houve grande modificação em relação ao CPC/1973. Ainda que a parte qualifique um caso de tutela antecipada como cautelar ou vice-versa, o princípio da fungibilidade (decorrência do aproveitamento dos atos processuais – art. 283, parágrafo único) permite que o juiz aprecie a medida pleiteada, sem maiores percalços.

Contra esse provimento, concedendo ou não a medida, caberá agravo de instrumento (art. 1.015, I), a não ser que se trate de tutela provisória apreciada na sentença, hipótese em que será cabível a apelação (arts. 1.009, § 3º e 1.013, § 5º). Era assim no CPC/1973 (por construção jurisprudencial) e continua a ser no CPC/2015.

Contudo, quando se trata de tutelas de urgência formuladas em caráter antecedente, a situação se torna bem mais complexa. É que o CPC/2015, de forma criticável, criou dois procedimentos distintos: um para a tutela antecipada em caráter antecedente (arts. 303 e 304) e outro para a tutela cautelar em caráter antecedente (arts. 305 a 310).

Daí que, embora haja correta referência na lei à fungibilidade (art. 305, parágrafo único – da tutela cautelar para a tutela antecipada),[8] como o legislador contemplou dois procedimentos distintos (e com efeitos variados, em especial a estabilização do art. 304, prevista unicamente para a tutela antecipada), tal dualidade de regimes jurídicos obrigará ao juiz a explicitar eventual conversão de uma espécie de tutela de urgência em outra. Aludido dever decorrerá, inclusive, da noção de contraditório participativo do novo CPC, que impede que as partes sejam surpreendidas com um procedimento alternativo, sem que dele tenham tomado prévio conhecimento.[9]

Mas esse não é o único inconveniente. O regime do CPC/2015 abrirá margem para que eventual recurso seja interposto somente para discutir a classificação adequada em cada caso concreto.[10] No CPC/2015, retornaremos a discussões superadas, como, por exemplo, a natureza satisfativa ou conservativa do pedido de sustação do protesto. Para dizer o mínimo, não parece a melhor solução em um sistema que se diz voltado à prioridade do julgamento do mérito (arts. 4º; 282, § 2º; 317 e 488, entre outros)…

E quais são as distinções entre a tutela antecipada em caráter antecedente e a tutela cautelar em caráter antecedente? Vamos às principais diferenças:

 

Tutela antecipada antecedente(arts. 303 e 304) Tutela cautelar antecedente(arts. 305 a 310)
Aditamento da petição inicial, com pedido de tutela definitiva em cinco dias Formulação do pedido principal (nos mesmos autos, ao contrário do que ocorrida no CPC/1973) em trinta dias da efetivação da tutela cautelar
Contestação na forma do art. 335 do CPC/2015, igual ao procedimento comum Contestação quanto ao pedido de tutela cautelar no prazo de cinco dias
A não realização do aditamento no prazo legal implica extinção do processo sem resolução do mérito A não formulação do pedido principal no prazo legal implica ineficácia da tutela cautelar concedida[11]
O indeferimento da tutela antecipada antecedente acarretará a determinação de emenda da petição inicial para a sua complementação e formulação do pedido de tutela definitiva, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito O indeferimento da liminar de tutela cautelar não impede o prosseguimento do processo, ainda que não seja formulado o pedido de tutela definitiva, determinando-se a citação do réu para responder ao pedido de tutela cautelar
Possibilidade de estabilização, na forma do art. 304 Não é possível a estabilização

 

  1. Prelúdio para o caos: a estabilização da tutela antecipada

 Chegamos ao ponto mais difícil da tutela provisória no CPC/2015, que é a estabilização da tutela antecipada prevista no art. 304.

Difícil porque a disciplina legal do instituto foi, para dizer o mínimo, incompleta. Há dúvidas – e discussões doutrinárias – quanto aos seus pressupostos (somente o recurso do réu impede a estabilização da tutela antecipada ou outras medidas processuais podem ter esse efeito?), sua relação com o procedimento de tutela antecipada em caráter antecedente regulado no art. 303 (o aditamento da petição inicial para a formulação do pedido de tutela definitiva impede a estabilização?) e seus efeitos (o encerramento do prazo de dois anos para rever, modificar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada implica formação de coisa julgada material?).

 

Enfim, chegaremos ao caos prometido no início desse texto.

Como o assunto é complexo e não pode ser bem desenvolvido em poucas linhas, nesta semana ficamos por aqui. Na parte II, voltaremos à discussão que se apresenta.

Aguardem! Abraços e até a próxima!

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[1] Sobre a sentença de improcedência liminar do pedido, v. meu texto: ROQUE, Andre Vasconcelos. Improcedência liminar no novo CPC: mesmo nome, diferentes veículos. Jota, publicado em 9.5.2016, disponível em http://jota.uol.com.br/improcedencia-liminar-no-novo-cpc-mesmo-nome-diferentes-veiculos

[2]  GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Teoria geral do processo – Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2015, p. 852.

[3] No CPC/1973, a tutela de evidência não estava sistematizada, mas já havia hipóteses em que se admitia a concessão de provimentos fundados em cognição sumária independentemente da demonstração do periculum in mora, como no caso de abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu (art. 273, II, do CPC/1973) ou na ação possessória de força nova, ou seja, ajuizada em menos de um ano e dia da turbação ou do esbulho (art. 924 do CPC/1973).

[4] Sobre essa hipótese, detidamente, GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Novo CPC: A ressurreição da ação de depósito. Jota, publicado em 2.3.2015, disponível emhttp://jota.uol.com.br/novo-cpc-ressurreicao-da-acao-de-deposito

[5] Sobre essa situação, v. o texto de OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Ônus da impugnação específica no Novo CPC: o réu e a dúvida razoável. Jota, publicado em 8.2.2016, disponível emhttp://jota.uol.com.br/onus-da-impugnacao-especifica-no-novo-cpc-o-reu-e-a-duvida-razoavel

[6] Apontamos uma outra modalidade de tutela de evidência, em sede recursal, em outro texto nesta coluna: ROQUE, Andre Vasconcelos. Uma tutela nada evidente: a tutela da evidência recursal. Jota, publicado em 21.12.2015, disponível em http://jota.uol.com.br/uma-tutela-nada-evidente-a-tutela-da-evidencia-recursal

[7] Art. 305, parágrafo único do CPC/2015: “Caso entenda que o pedido a que se refere o caput tem natureza antecipada, o juiz observará o disposto no art. 303”.

[8] Não há regra contemplando a fungibilidade em sentido inverso, ou seja, da tutela antecipada para a cautelar. Não há, porém, nenhuma razão para que essa conversão seja vedada, a qual terá por fundamento, uma vez mais, o princípio do aproveitamento dos atos processuais, contemplado no art. 283, parágrafo único do CPC/2015.

[9] A rigor, seria possível sustentar até que o juiz não pode converter uma tutela cautelar antecedente em tutela antecipada antecedente (ou vice-versa) sem antes permitir que as partes se manifestem sobre tal hipótese com fundamento no art. 9º. Tal discussão, contudo, fica para outra oportunidade, por dizer respeito sobretudo aos limites do contraditório no CPC/2015.

[10] Como bem observado por Zulmar Duarte: “Aliás, proposta tutela antecipada em caráter antecedente, acaso o juiz considere que o pedido tem natureza acautelatória e determine sua adequação para tutela cautelar (ou o reverso), cabível será o recurso de agravo de instrumento. Nessa hipótese, a determinação de conversão da tutela antecipada para cautelar importa na negação implícita do pedido antecipatório, razão porque se enquadrada na situação prevista no artigo 1.015, inciso I, do Novo CPC, ou seja, trata-se de uma decisão interlocutória versando sobre tutela provisória. Portanto, o Novo CPC reacendeu a distinção entre a tutela cautelar e a tutela antecipada, na medida em que indispensável, nos pedidos apresentados de forma antecedente, o enquadramento numa ou noutra hipótese, haja vista a diversidade de procedimentos, requisitos e consequências da tutela cautelar frente à tutela antecipada” (OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Acautelar ou satisfazer? O “velho problema” no Novo CPC. Jota, publicado em 30.3.2015, disponível emhttp://jota.uol.com.br/acautelar-ou-satisfazer-o-velho-problema-no-novo-cpc).

[11] De acordo com o Enunciado de Súmula 482 do STJ, concebida ao tempo do CPC/1973, a falta de ajuizamento da ação principal no prazo legal implicaria também a extinção do processo cautelar. Acredita-se que tal orientação permanecerá no CPC/2015, de maneira que a não formulação do pedido principal implicaria a extinção do processo sem resolução de mérito.

Por Andre Vasconcelos RoqueDoutor e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor Adjunto em Direito Processual Civil da FND-UFRJ. Membro do IIDP, IBDP, CBAr, IAB e CEAPRO. Sócio de Gustavo Tepedino Advogados

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