Ações de indenização por danos morais e materiais sofridos durante a ditadura militar são imprescritíveis. O entendimento unânime é da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça. De acordo com a Turma, nestes casos não pode prevalecer a prazo de cinco anos para que ocorra a prescrição. Para os ministros, o artigo 14 da Lei 9.140/95 — que trata dos pedidos de indenização — não restringiu seu alcance aos desaparecidos políticos.
A questão foi decidida em recurso especial de um advogado paranaense, preso arbitrariamente no período militar quando exercia suas funções profissionais. Vlademir Amarante foi líder estudantil. Na ação, contou que estava com um cliente — em uma sala de audiências no Fórum de Guarapuava (PR) — quando foi preso sem nenhuma explicação. O fato ocorreu em 15 de outubro de 1975, quando ele tinha 29 anos.
O fórum foi invadido pelos soldados do Exército armados “como em guerra”. Ele foi levado algemado. No quartel, recebeu voz de prisão e, à noite, os soldados, juntamente com integrantes do DOI-Codi, teriam vedado seus olhos e o jogado no chão. Ele alega que levou chutes, tapas e socos. Permaneceu preso por cerca de quatro anos. Além disso, teve problemas na OAB de Santa Catarina e do Paraná por estar respondendo a processo contra a segurança nacional por prática de crime político.
A Justiça Federal do Sul do país garantiu-lhe a indenização em um mandado de segurança. O juiz entendeu que ele foi preso por crime de pensamento, privado do convívio de sua família e, após solto, passou a viver em liberdade vigiada, sem poder exercer cargos públicos ou estatais, fazer viagens ao exterior, participar de concurso público, sendo monitorado pelo DOPS. Para chegar ao valor da indenização, o juiz considerou que o advogado contava com 29 anos de idade, estava no início da carreira, já com movimentado escritório de advocacia, quando foi retirado do meio social e colocado na clandestinidade, mas que se encontrava vivo, “talvez capaz de aproveitar um pouco a reabilitação social”.
Assim, fixou em R$ 50 mil a indenização pelos danos morais sofridos pelo advogado em decorrência das atividades dos agentes da União na repressão ao crime de pensamento. Pelo tempo que ele ficou preso — de 15 de outubro de 1975 a 30 de agosto de 1979 —, a União foi condenada a pagar-lhe R$ 600,00 por cada mês (R$ 27.600 no total) a serem pagos imediatamente.
A União apelou. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sediado em Porto Alegre, manteve a decisão de primeiro grau. Para o TRF-4, ficou provado que ele foi preso de forma arbitrária, sofrendo torturas e privado do exercício da profissão à época do regime militar. Segundo o TRF-4, a tortura à época da ditadura militar é fato notório e de conhecimento da população e da imprensa, não necessitando de prova específica.
Diante desse entendimento, a União recorreu ao STJ e tentou reverter a decisão. Alegou que o acórdão contrariou o Decreto 20910 ao não reconhecer a prescrição, uma vez que o direito do autor nasceu com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a ação somente foi proposta em 1996.
Para o relator do caso no STJ, ministro Francisco Falcão, se o tribunal de origem entendeu terem ficado provados os fatos, não cabe ao tribunal superior reapreciar provas.
Quanto à prescrição, o ministro afirmou que a leitura isolada do artigo primeiro do Decreto 20.910/1932 poderia dar a impressão que as alegações da União estariam certas quanto a ter ocorrido a prescrição. O artigo dispõe que as dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, assim como todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.
No entanto, posterior legislação (a Lei 9.140), ao dispor sobre as indenizações decorrentes dos abusos cometidos no regime militar, em seu artigo 14, não restringe o alcance da lei aos desaparecidos políticos. “Pelo contrário, ele abrangeu todas as ações indenizatórias decorrentes de atos arbitrários do regime militar, incluindo-se aí os que sofreram constrições à sua locomoção e sofreram torturas durante a ditadura militar”, entende Falcão. Para ele, o prazo prescricional para ajuizar ação de indenização foi reaberto pelo artigo 14.
O ministro levou em consideração julgamento anterior, do qual o ministro José Delgado foi relator, que teve decisão no mesmo sentido, segundo a qual o dano sofrido atinge o mais consagrado direito da cidadania: o do respeito à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo e a imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes de sua prática. “A imposição do Decreto 20.910/32 é para situações de normalidade e quando não há violação a direitos fundamentais protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição Federal”, afirmou Delgado.
Ao acompanhar esse entendimento, o ministro Luiz Fux destacou que a tortura é o mais expressivo atentado à dignidade da pessoa humana, valor erigido com um dos fundamentos do Brasil. Segundo as cláusulas pétreas da Constituição brasileira, é juridicamente sustentável estabelecer que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento. Conseqüentemente, não se pode falar em prescrição da ação que visa implementar um dos pilares da República, especialmente porque a Constituição Federal não estipulou lapso de tempo para extinguir-se o direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade.
“A exigibilidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz”, afirmou Fux.