O Ministério Público não possui atribuições para realizar, diretamente, investigação de caráter criminal — essa foi a decisão, prolatada em maio próximo passado, no recurso ordinário em habeas corpus nº 81.326-7 (1), pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, unanimemente, sob o voto condutor do ministro Nelson Jobim.
Esse julgamento erige-se num corolário de diversas outras decisões de tribunais de todo o país que, não sem algumas hesitações, têm consagrado o mesmo entendimento.
A divulgação de tal decisum constituiu-se num forte sopro sobre as brasas da polêmica que vem, há mais de dez anos, sendo alimentada, no mundo jurídico, pela instauração e funcionamento dos chamados “procedimentos investigatórios criminais” (no Rio de Janeiro) ou “procedimentos administrativos criminais” (em São Paulo e alhures).
Em seu voto, o ministro Jobim demonstra que, historicamente, no direito processual penal brasileiro, as atribuições para realizar as investigações preparatórias da ação penal têm sido da polícia, pelas mais diversas razões (que explicitaremos adiante), as quais têm prevalecido a ponto de todas as iniciativas no sentido de mudar as regras nessa matéria terem sido repelidas, desde a proposta de instituir juizados de instrução feita pelo então ministro da Justiça, Vicente Ráo, em 1936, passando pela elaboração da Constituição de 1988, pela feitura da lei complementar relativa ao Ministério Público, em 1993, até propostas de emendas constitucionais em 1995 e 1999, com o objetivo de dar atribuições investigatórias ao Parquet.
Os legisladores constituintes e ordinários sempre rejeitaram a idéia de transformar, o Ministério Público, em “Grande Inquisidor”, reservando a ele o papel superior de controlador/fiscalizador das investigações policiais. Destarte, o ministro Jobim, que foi parlamentar constituinte, afirma, com a autoridade e segurança de quem faz a interpretação autêntica, que a mens legis das normas em vigor é, seguramente, na direção de manter as investigações como atribuição exclusiva da polícia judiciária.
Mantendo uma perspectiva histórica da discussão, devemos mencionar que, da parte dos advogados, foi o inexcedível Evaristo de Moraes Filho (2), dotado da antevisão do gênio, quem cedo manifestou sua preocupação diante do fenômeno investigatório do Ministério Público.
E ousou fazê-lo em palestra proferida na Escola Superior do Ministério Público da Bahia, em fins de novembro de 1996.
Nesse trabalho, Evaristo deita por terra o mito criado a respeito da legislação européia, cujo exemplo se quis, canhestramente, seguir, demonstrando que, ressalvando-se a Inglaterra, onde o Ministério Público não investiga diretamente, deixando tal mister à polícia, é bem verdade que, no continente, prevalece sistema oposto, figurando o Parquet como condutor das investigações preliminares.
Porém (e que importante porém), não são lá as coisas como aqui se quer fazer — reproduzimos as palavras do grande confrade que cedo se foi:
Há de ressalvar, porém, que o novo código italiano preocupou-se em estabelecer uma diversificação de funções, ainda na fase preliminar, instituindo a figura do giudice per le indagini preliminari (art. 328), incumbido de manifestar-se sobre certas questões de natureza probatória, e competente para examinar o pedido de arquivamento, e, sobretudo, para decidir sobre a abertura da ação penal, após uma audiência de caráter contraditório, com possibilidade de colheita de novas provas.
A presença deste juiz é forma de controlar, indiretamente, a atuação do Ministério Público, como que em resposta à famosa indagação de Juvenal: Quis coustodiet ipsos Custodes?
Por fim, ratificando a tendência do séparatisme destacada por Pradel, o diploma peninsular não permite ao juiz que prolatou decisão na fase da audiência preliminar prosseguir funcionando nas etapas ulteriores do processo (art. 342). (3)
Como se vê, ainda que inquisidor, no Velho Mundo não resta o pubblico ministero senhor absoluto do procedimento; as provas que colhe na sua atividade investigatória são submetidas a juiz e se estabelece contraditório antes mesmo da instauração da ação penal, ao contrário do que se vem fazendo aqui, onde a promotoria instaura procedimento, decide que diligências e inquirições realizar (e as realiza ao seu talante), mantém a defesa técnica ao largo da investigação e, ao fim, oferece denúncia com base unicamente nesse inquérito secreto, com cores da Inquisição e de Kafka, temperado à moda de ditadura militar nacional, do qual, durante o andamento, a ninguém dá satisfações. Registra, investiga e denuncia, quando, não raro, antecipa, de jeito midiático, “sentença penal irrecorrível” proferida em desfavor de quem há de ter preservada a presunção de inocência, como manda a Constituição.
A forma de investigação recém repelida pela Corte Suprema milita em direção frontalmente oposta à tendência mundial em se preservar, ainda nas palavras de Evaristo, o respeito à paridade de armas, o que, por si só, já seria razão suficiente para não se admiti-la.
Nesse sentido, Nélio Machado (4) destaca que a referida tendência ao equilíbrio de forças se manifesta em nossa Carta Política, a qual estabelece “uma verdadeira simetria, uma absoluta paridade entre as funções da acusação pública e da defesa”.
E nos chama a atenção para o fato de os doutrinadores afirmarem, em uníssono, que deve haver igualdade entre as partes — a chamada paridade de armas, repita-se — equilíbrio que se esvairá se uma delas, a acusação, açambarcar atividade investigatória, com poderes inauditos, em desfavor da defesa.
Entretanto, além do desequilíbrio entre as partes, a arranhar o devido processo legal, há razão outra, das melhores, para que não se admita arremedo de inquérito policial pelo Parquet. Ainda Evaristo (5) quem a ressalta. Trata-se do risco da parcialidade. Diríamos nós, ousando, não há risco, há parcialidade.
Quem investiga adota, logo no início de seus trabalhos, um determinado ponto de vista (independentemente de qual seja a autoridade que investiga), uma hipótese provisória (no dizer de Altavilla, apud Evaristo), uma premissa maior, sem a qual nenhuma conclusão advirá.
Tal hipótese pode seduzir, e como seduz o investigador de tal forma que o torne indiferente (cego, seria a expressão adequada) a qualquer outra possibilidade, o que seria extremamente danoso se ocorresse com um promotor de Justiça inquisidor e se torna minimizado com a separação de funções, tal como posta nas normas.
Sim, porque, sem embargo dos bons motivos já elencados para não se acatar a figura do promotor de Justiça investigador, a maior das razões é que, simplesmente, a Constituição, tanto como as demais leis, não o permitem. A interpretação dada pelos que afirmam poder o Ministério Público investigar crimes é equivocada, de leitura distorcida. Dizemos isso com o maior apreço aos que não comungam desta hóstia, como, por exemplo, sem falar no eminente professor Claudio Fontelles, os representantes do Ministério Público gaúcho, federal e estadual, respectivamente, professores Luciano Feldens e Lênio Streck (6) e, em terras cariocas, professores Sérgio Demoro Hamilton (7), Muiños Piñeiro e Paulo Rangel, porque não conseguimos compreender, por mais respeito e amizade que nutramos pelos juristas nomeados, como ser possível uma interpretação que não sistemática dos incisos de um artigo de legislação em descompasso com a mens legis.