Acabou o primeiro ano do novo governo, e quase ninguém está satisfeito com a situação do país. No entanto, fato curioso, o governo mantém o mesmo índice de aprovação do primeiro trimestre.
Certo, a gestão é criticada, mas a forma básica de grande parte das críticas recorrentes é peculiar. Numa estranha frente unida (que vai da esquerda militante até a direita conservadora, incluindo os que aprovam a gestão), muitos acusam o governo de não fazer o que ele se propunha fazer. Ou seja, apontando contradições entre o espírito do projeto e a realidade da política econômica e social, essas críticas não adotam a forma usual: “Vocês não fazem o que nós gostaríamos”. Mas afirmam: “Vocês não fazem o que vocês mesmos gostariam”.
O sentido das queixas é diferente segundo a proveniência. Por exemplo, a extrema esquerda exige uma fidelidade absoluta à promessa de justiça social, a esquerda moderada pede apenas um maior respeito dessa promessa na hora dos compromissos necessários e os conservadores agitam a contradição entre promessa e realidade para desacreditar o governo (“Eles enganaram vocês: dobram-se às necessidades do neoliberalismo pior que a gente e distribuem ilusões como pães quentes”).
Mas, além das diferenças, a forma é a mesma. O governo não é acusado de defender interesses escusos que tornariam nossa vida miserável.
Ele é acusado de ser, de alguma forma, infiel a si mesmo. Nisso, as ditas críticas ao governo federal se parecem com nossa autocrítica mais banal.
Afinal, somos constantemente divididos entre uma aventurosa vontade de mudança e escolhas conformistas que são as nossas, mas que nos frustram e com as quais não concordamos. Ou, então, entre grandes princípios nos quais acreditamos firmemente e comportamentos que adotamos (com uma certa vergonha) para proteger nossos interesses.
Quero justiça social já, mas não sou nenhum São Francisco, e a simples redistribuição não resolveria nada. Quero reforma agrária já, mas meu sítio é produtivo e, de qualquer forma, não basta assentar famílias; seria preciso criar uma rede de cooperativas, e isso é complicado.
Quero uma sociedade igualitária, mas três salários mínimos para a faxineira não tem como; se eu for obrigado a dispensar seus serviços, não vai ser pior?
Para explicar a dissonância entre nossos anseios e nossa realidade, acusamos a dureza impiedosa do mundo: gostaríamos de ser generosos e revolucionários, mas, se fôssemos, a realidade nos atropelaria. A desculpa não é maquiavélica. De fato, o mundo não é mole: ele nos força a desistir do que nos parece certo e racional em favor do que é apenas razoável.
Em geral, agüentamos os compromissos aos quais nos resignamos graças a um reforço retórico, a uma dose extra de declarações de intenções e de princípios.
Somos todos (ou quase) José Dirceu ou Palocci na hora dos apertos do fim do mês. Somos todos (ou quase) Lula na hora de declarar guerra à fome ou ao desemprego e de chorar evocando o homem do lixão que come melancia descartada.
Exatamente como o governo, quando apresentamos nossa face ao mundo (e a nós mesmos), esquecemos nosso pragmatismo (ele nos é imposto, não é bem “nosso”) e nos imaginamos e proclamamos grandiosamente generosos, embora impedidos.
A oscilação entre entusiasmos revoltados e inércia conformista é uma herança de nossa adolescência. Tivemos que decidir (e talvez estejamos eternamente decidindo) se, para nos tornarmos adultos, é melhor imitar os genitores, sacrificando nossa individualidade, ou contrariá-los, encontrando a prova de nossa autonomia na decepção e no desespero dos pais.
A solução mais popular consiste em tomar o caminho de uma “normalidade” que nos garante algum conforto e que corrigimos com sobressaltos de rebeldia espetacular.
Por exemplo, estudo, sei lá, direito constitucional, mas, à noite, saio na balada com os Gaddafis da vida. Por mais que estejamos infelizes com a situação, o governo atual nos satisfaz, não por suas realizações, mas porque ele encena nossas próprias contradições.
É um conforto constatar que as mulheres e os homens que elegemos se dobram às mesmas necessidades que nós acusamos de frear nossos impulsos generosos e libertários.
Claro, a contradição não nos deixa tranquilos. Na hora dos compromissos, somos atormentados pela voz da consciência. Talvez por isso surja uma simpatia quase unânime (inclusive nas fileiras da direita) pelos excluídos e demissionários do PT.
Aproveitamo-nos dessa ocasião para tomar as dores de nossa parte rebelde. Podemos torcer por nossas Heloísas Helenas e nossos Gabeiras internos sem risco algum, pois o governo (e não nós) se encarrega de silenciá-los e, portanto, leva a culpa.
A mesmice social-democrata não satisfazia nossos anseios radicais de mudança e de justiça. Um regime que seguisse só esses anseios seria provavelmente catastrófico.
O governo do PT inventa uma nova fórmula, adequada à nossa divisão subjetiva: a social democracia neoliberal com retórica radical da esperança.
Estamos insatisfeitos com o governo assim como estamos insatisfeitos com nossas próprias contradições. E o governo está próximo do povo como nunca, pois, pela felicidade da nação, ele é nosso retrato.