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Os novos rumos da corte da Haia

O Estado de nacionalidade, a República da Guiné, apresentou a demanda à Corte da Haia

Em três decisões recentes (2010-2011), a Corte Internacional de Justiça tem dado sinais de sua disposição em trilhar novos rumos, e assumir posição de vanguarda na evolução do Direito Internacional contemporâneo. Ainda é cedo para afirmar que se inicia uma nova era em sua jurisprudência, mas ao menos os recentes sinais alentadores nesse sentido não devem passar despercebidos. A primeira dessas decisões diz respeito ao caso A.S. Diallo, atinente a maus-tratos seguidos de expulsão de um empresário estrangeiro bem-sucedido, que se tornara credor do Estado de residência (República Democrática do Congo). O Estado de nacionalidade, a República da Guiné, apresentou a demanda à Corte da Haia, que emitiu sua Sentença quanto ao mérito em 30.11.2010.
O caso, originalmente submetido à Corte no exercício da proteção diplomática discricionária (interestatal), no decorrer do procedimento (fases escrita e oral) quanto ao mérito experimentou uma verdadeira metamorfose (parafraseando Kafka). As próprias partes litigantes deixaram de lado os conceitos tradicionais próprios da proteção diplomática, e passaram a argumentar — dando mostras de um notável espírito de cooperação processual — no universo conceitual da proteção dos direitos humanos. Em sua Sentença de 30.11.2010, a Corte da Haia, pela primeira vez em toda a sua história, estabeleceu violações de dois tratados de direitos humanos, o Pacto de Direitos Civis e Políticos (das Nações Unidas) e a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, em decorrência das detenções arbitrárias de A.S. Diallo no Congo seguidas de sua expulsão do país.
A Corte da Haia moveu-se, assim, da dimensão inter-estatal à intra-estatal. E, igualmente pela primeira vez em toda a sua história, a Corte Internacional de Justiça procedeu a um reconhecimento explícito da contribuição, à matéria em apreço, da jurisprudência de dois tribunais internacionais de direitos humanos, as Cortes Interamericana e Européia de Direitos Humanos, além da prática da Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (precursora da recém-estabelecida Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos).
Em meu extenso Voto Arrazoado no caso A.S. Diallo, destaquei a relevância da nova posição (humanista) assumida pela Corte da Haia, e invoquei o princípio da humanidade (que a meu ver transcende o Direito Internacional Humanitário convencional e se estende ao próprio direito internacional geral) assim como o princípio pro persona humana, no âmbito da jurisprudência — agora realmente em evolução — da Corte Internacional de Justiça, no combate à arbitrariedade. Ademais, endossei as conclusões da Corte e sua determinação adicional da violação do direito individual à informação sobre assistência consular (artigo 36(1)(b) da Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963), mas o fiz com base no enfoque pioneiro e inovador avançado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em seu Parecer Consultivo nº 16 sobre o Direito à Informação sobre Assistência Consular no Âmbito das Garantias do Devido Processo Legal (1999), testemunhando o processo histórico em curso da humanização do direito consular em particular, e do Direito Internacional em geral (cf. A.A. Cançado Trindade, International Law for Humankind — Towards a New Jus Gentium, Leiden/The Hague, Nijhoff/The Hague Academy of International Law, 2010, pp. 1-726).
No mesmo Voto no caso A.S. Diallo, dediquei enfim atenção à necessidade de decidir a questão das reparações, em casos do gênero, da perspectiva das próprias vítimas, os seres humanos (e não seus Estados respectivos). No cas d´espèce, os danos foram causados ao Sr. A.S. Diallo, e não à República da Guiné. O chamado princípio Mavrommatis, estribado em uma célebre ficção jurídica, afigura-se a meu ver hoje superado, com a evolução contemporânea do direito internacional rumo ao direito das gentes (cf. A.A. Cançado Trindade, Évolution du Droit international au droit des gens – L’accès des particuliers à la justice internationale: le regard d’un juge, Paris, Pédone, 2008, pp. 1-187).
Não há como fazer abstração dos seres humanos, destinatários últimos das normas do direito das gentes, titulares de direitos emanados diretamente do direito internacional. São efetivamente sujeitos do direito internacional, dotados de personalidade jurídica internacional, como hoje o reconhece inequivocamente a própria Corte Internacional de Justiça. Não há como eludir a posição dos indivíduos como sujeitos do Direito Internacional, nem sequer no contencioso interestatal clássico, próprio da Corte da Haia. Isso se torna manifesto quando esta Corte é chamada a ir mais além do plano inter-estatal, e adentrar-se decisivamente nas relações jurídicas na dimensão intra-estatal. Esse desenvolvimento, ademais de alentador na busca da realização da justiça nos planos, a um tempo, nacional e internacional, parece-me, ademais, irreversível, dado o despertar da consciência humana para sua necessidade.
[b]
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE[/b]
Juiz da Corte Internacionnl de Justiça (Haia), ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, professor emérito de Direito Internacional da UnB, professor honorário da Universidade de Utrecht, membro do Institut de Droit International, do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas

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