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Responsabilidade do estado e do indivíduo

HAIA – Há que ter presente, particularmente em nossos dias, que a jurisdição internacional é copartícipe da jurisdição nacional na realização da justiça. A esse respeito, há dois desenvolvimentos recentes em nosso continente, em que as jurisdições nacionais do Peru e da Guatemala vêm de dar exemplo ao mundo, nas condenações de seus ex-mandatários (A. Fujimori e E. Ríos Montt) por violações graves do direito internacional humanitário e do direito internacional dos direitos humanos, perpetradas em épocas de repressão sistemática — que não podem passar despercebidos de nossos círculos jurídicos.

No período de 2007-1010 deram-se os juízos em Lima resultantes em condenações, pela Corte Suprema (Sala Penal Especial) do Peru, do ex-presidente da República A. Fujimori, posteriormente às sucessivas condenações do regime fujimorista pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIADH), por violações graves dos direitos humanos (como, inter alia, nas Sentenças nos casos dos massacres de Barrios Altos e de La Cantuta). Nesta matéria, significativamente, a jurisdição internacional precedeu a nacional. No ciclo dos casos peruanos, a CtIADH determinou, reiteradamente, a responsabilidade internacional do Estado (durante o regime fujimorista).

Posteriormente se deram, no próprio Peru, os juízos do ex-presidente da República (A. Fujimori), que resultaram em suas condenações, pela Sala Penal Especial do Peru (Sentenças de 11.12.2007, 07.04.2009 e 30.09.2009, confirmadas em 03.01.2010). Essas condenações do mais alto mandatário, no plano do direito interno, citaram as anteriores condenações pela CtIADH do regime fujimorista — comprometendo a responsabilidade internacional do Estado —, e.g., nos casos dos massacres de Barrios Altos (Sentenças quanto ao mérito, de 14.03.2001; de interpretação, de 03.09.2001; e de reparações, de 30.11.2001), e de La Cantuta (Sentença de mérito e reparações, de 29.11.2006) — dois casos de importância e trascendência históricas.

Assim, uma vez estabelecida a responsabilidade internacional do Estado por violações graves dos direitos humanos, se procedeu, no plano do direito interno peruano, à determinação da responsabilidade penal do então presidente da República pelos massacres de Barrios Altos e La Cantuta. No supracitado ciclo dos casos peruanos, e particularmente no caso paradigmático do Tribunal Constitucional (Sentença da CtIADH de 31.01.2001), a jurisdição internacional efetivamente interveio em defesa da nacional, contribuindo decisivamente para restauração do Estado de Direito, ademais de ter salvaguardado os direitos dos vitimados.

Há poucos dias, o mesmo volta a ocorrer, desta feita na Guatemala, com a condenação, pelo Tribunal Superior (Tribunal A “de Mayor Riesgo”, Sentença de 10.05.2013), do ex-mandatário E. Ríos Montt, por 15 massacres de membros das comunidades maias-ixil (perpetrados em 1982-1983). Novamente a jurisdição internacional precedeu a nacional, e deixa como lição o fato de que as responsabilidades internacionais do Estado e do indivíduo (que age em nome do primeiro) não se autoexcluem, mas se complementam. Estado e indivíduo são sujeitos do direito internacional contemporâneo — são titulares de direitos e portadores de obrigações que emanam diretamente do direito internacional.

Recorde-se que a CtIADH, na Sentença de 29.04.2004, no caso do Massacre de Plan de Sánchez, além de determinar a responsabilidade do Estado demandado, ordenou ao mesmo investigar os fatos e julgar e sancionar os autores (materiais e intelectuais) das atrocidades perpetradas. Em meu Voto Arrazoado naquela decisão, concentrei minhas reflexões no crime de Estado e na responsabilidade internacional agravada. Em meu livro de memórias da CtIADH (El Ejercicio de la Función Judicial Internacional-Memorias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2ª. ed., Belo Horizonte, Edit. Del Rey, 2013, pp. 1-409), desenvolvo minhas considerações a respeito. A recente Sentença de 10.05.2013 do Tribunal Superior A guatemalteco se reveste de especial importância, inclusive no âmbito das reparações às vítimas, pois determina a responsabilidade do ex-presidente de facto como autor intelectual de 15 massacres de integrantes das comunidades maias-ixil.

Outra lição a ser extraída desses dois desenvolvimentos recentes (atinentes aos ciclos dos casos peruanos e guatemaltecos) reside na necessidade de se estudar o direito penal internacional contemporâneo não isoladamente, mas necessariamente de forma conjunta com o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitário e o direito internacional dos refugiados. Na história das relações — e interações — entre as jurisdições internacional e nacional, os desenvolvimentos aqui revistos continuarão certamente a ser estudados pelas gerações presentes e futuras de jusinternacionalistas e constitucionalistas, tanto latino-americanos quanto de outras regiões do mundo. A contrário do que muitos ainda supõem em tantos países, as jurisdições nacional e internacional, no século XXI, não são concorrentes ou conflitivas, mas sim complementares, em constante interação na proteção dos direitos da pessoa humana e na luta contra a impunidade dos violadores de tais direitos.

 

Post Scriptum do Autor:
Pouco depois de remeter o presente artigo ao Suplemento Direito & Justiça, veio a ser divulgada a mais recente anulação (de 20.05.2013), pela Corte de Constitucionalidade (CC) da Guatemala, da atuação do Tribunal A guatemalteco, em sua referida decisão (de 10.05.2013) de condenação do ex-ditador E. Ríos Montt. Não obstante essa reversão, tudo o que afirmo no presente artigo retém sua plena validade, além de demonstrar que a busca da Justiça é, como no mito de Sísifo, perene, e o combate à impunidade não tem fim.

Autor: Antonio Augusto Cançado Trindade
Juiz da Corte Internacional de Justiça (Haia), ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, professor emérito de Direito Internacional da UnB, professor honorário da Universidade de Utrecht, membro do Institut de Droit International, do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas

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